sábado, 21 de maio de 2022

Nossa Senhora e o anjo

 Hoje o primeiro mistério do terço é a “Anunciação do nascimento de Jesus”. A imagem que ilustra minha reflexão, é uma gravura do maior ilustrador de todos os tempos: Gustave Doré. Não é a mais bela das representações da Anunciação, mas há uma fidedignidade com o anjo Gabriel que poucos artistas se colocaram a enfrentar. Doré ilustrou a Divina Comédia, e nessas ilustrações tentou, como grande artista que era, permanecer coerente com a metafísica tomasiana, como o próprio Dante o fez em sua obra maior. Assim, ao representar os anjos e o plano espiritual/paraíso, arranjou uma baita encrenca: como dar contorno gráfico para coisas essencialmente imateriais?

Vamos aos anjos. Ora, sendo os anjos formas puras, o que significa que não possuem materialidade alguma, dá-se por consequência que são incorpóreos. Isto é, bebezinhos fofinhos com asas - por favor não rasguem as vestes -, são apenas alegorias de pureza e elevação. A coisa é ainda mais complicada. Não tendo matéria, não lhes seria possível nem mesmo estarem inclusos no espaço, pois só um corpo, seja feito do que for, pode ocupar espaço.

Antes de irmos à solução gráfica de Doré para a Anunciação e o anjo Gabriel, vamos à solução metafísica de Tomás de Aquino. Encaremos o problema da presença dos anjos no espaço. Se são os anjos imateriais, não podem ocupar espaço, assim, como então o anjo Gabriel “entrou” nos aposentos de Maria para dizer-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”? Tomás nos responde que há duas maneiras de algo estar em algum lugar, ou pela presença de seu corpo ou pela influência de sua ação. Assim, saibamos que de fato a presença angélica é possível. Mesmo sendo imateriais, podem estar presentes ao influenciar nossa inteligência, vontade e imaginação.
Mas agora, pensemos, você é um ilustrador e sabe de tudo isso, como representará um ser imaterial, uma forma pura? Na ilustração Doré deu ao anjo Gabriel apenas contornos, como se fosse constituído plenamente de luz, pouco se distinguindo do espaço que ocupa. No que diz respeito a representação gráfica, buscou aquilo o que nas nossas experiências sensíveis, mais próximo está da incorporeidade: a luz. E com a luz, que aqui toma notas de metáfora, ofereceu contornos para a imaterialidade angélica.
Disso tudo decorre que nessa gravura temos insinuadas duas dimensões: a de Maria Santíssima que no recolhimento de suas mãos, preserva na interioridade uma experiência intraduzível; e a nossa que por gentileza do artista, faz-nos capazes de tenuemente ver a presença puríssima do anjo, que por conta de nossa miséria pessoal, não teríamos o direito nem de sentir o perfume.  

Santo Tomás e Santo Agostinho

  Há uma sútil diferença que experiencio ao ler Santo Tomás e Santo Agostinho: o segundo adorna suas verdades com as molduras da beleza literária; o primeiro, pela sua arte escultórica miraculosa de lapidar argumentos, torna algumas vezes impossível distinguirmos se o que escreve é belo porque é verdade ou é verdade porque é belo. Parece-me que Santo Tomás, não busca a beleza, entretanto sua busca pela sabedoria alça vôos tão altos que chegando na exosfera das formas platônicas, surpreende lá, a verdade e a beleza em seu abraço eterno. 

 Um desses momentos é quanto nos revela que em Deus estão as perfeições de todas as coisas e de um modo eminente e superabundante. Ora, esse é o tipo de coisa que por bem pouco não abrasa nossos miolos só na tentativa - claro, sempre infecunda - de tentarmos imaginar o que isso significa. 

 Vamos pegar pesado, comecemos com algo exuberantemente perfeito: Bach. Para quem já se deleitou com a obra desse magnânimo compositor, certamente chegou perto daquele longínquo lugar no qual habita a em extinção fauna do êxtase estético. Então, tenhamos em mente que a contemplação dessa perfeição que experienciamos em Bach, será somente um istmo insignificante de toda a perfeição concentrada em Deus que contemplaremos infinitamente. 

  A Boa Nova que nosso Senhor nos trouxe é tão excelsa que mal podemos compreendê-la. A conhecemos, afinal só se pode querer aquilo o que se conhece, mas quanto mais se conhece mais se quer e creio que se conhecêssemos tal como conheceram os santos a excelsitude da Boa Nova, os ossos de nossa alma queimariam no fogo Santo do Amor divino. Conhecemos tão pouco e mesmo assim é o suficiente para entregarmos nossas vidas à essa esperança. 

Veremos flores no céu?


Pela primeira vez minha inteligência resolveu divergir de Santo Tomás; talvez para agradar milha filha. Certa vez, minha amada Aurora com seu franciscanismo inerente, questionou-me sobre a perduração das almas dos animais na Jerusalém Celeste. Pobre Aurora, ainda bem que questionou a mim e não ao Compêndio de Teologia. 
Santo Tomas diz-nos que animais e plantas não terão seus corpos renovados após a ressurreição, pois tanto um quanto outro existem para suprir a corruptibilidade de nossos corpos - que na renovação tornar-se-ão incorruptíveis, assim não mais necessitaremos deles - e ainda mais, nem em animais nem nos vegetais ou mesmo nos mistos desses, há se quer partes incorruptíveis; o que torna injustificável sua renovação. Seriam renovados somente os quatro elementos, os corpos celestes e claro, nós. 
A justificativa para a renovação dos quatro elementos são boas, pois esses são constitutivos do homem e ainda são incorruptíveis no todo, mas corruptíveis nas partes, assim como os corpos celestes. E nesse ponto pouco diferimos deles, pois somos também incorruptíveis, só que ao contrário o somos numa parte e não no todo; nossa alma racional é incorruptível, todo o resto de nossa constituição é corruptível. 
Mas qual o problema? Tem algo que vorazmente me inclina a não aceitar que na renovação nossos irmãos vegetais e animais não estarão conosco na infinitude. Vá lá, tudo bem, não há nada de incorruptível neles, mas hoje sabemos que igualmente não há nada de incorruptível nos corpos celestes e assim percebemos que o calcanhar de Aquiles do frei Tomás fora a já superada ciência astronômica de sua época. Pois, com o que sabemos hoje sobre os astros, teríamos de rebaixar a leitosa e fascinante luz das estrelas, a mais um ornamento na criação. Pensemos, não será necessário, ao menos a que se refere ao conhecimento atual das ciências naturais, atualizar o tomismo? Bom, se é ou não, é inevitável que o façamos em relação a incorruptibilidades dos astros.   
Entretanto, como em um fio de esperança, diz-nos o sábio: "os astros servem ao homem porquanto sua grandeza e beleza nos revelam a existência do Criador". Será que só por essa serventia magnânima, sabendo da corruptibilidade dos errantes, Santo Tomás afirmaria a sua renovação na ressurreição? Pois bem, se o fizesse, não teria motivos para não dignificar igualmente toda a natureza.

3° Reflexão quaresmal

 

As perfeições de todas as coisas são, em Deus, uma só realidade; diz-nos Santo Tomás. Hoje, no terceiro Santo Sacrifício da quaresma, o pe. Remi profundamente tocado pelas coisas do alto, fortaleceu um pouco mais a pouca fé de meu miserável coração. Em seu sermão, lembrou-nos da Misericórdia Divina, mas pontuou, com suas palavras, o que há algum tempo, minhas reflexões levaram-me a crer: a Misericórdia Divina é incompreensível sem a certeza da Justiça Divina. Isto é, a Justiça Divina oferece-nos tanto alento quanto a própria Misericórdia. Assim parece que o Amor de Deus, nos alivia um tremendo peso dos ombros, pois, não teremos em nosso juízo pessoal, absolutamente nenhuma possibilidade de que nosso julgamento, não seja perfeitamente justo. E ao menos a mim, a certeza da Justiça Divina é um estrondoso sinal do Amor de nossa Pai, que mesmo nos sentenciando a uma eternidade de danações - caso a mereçamos -, o fará com uma mão pesada, mas sustentada por seu Amor insuperável que mesmo no castigo, nos marcará pela eternidade com a perfeição de sua Justiça. Dessa maneira, a Misericórdia Divina, dá-nos força para que mesmo em nossa pequenez, possamos superar as mesquinhezas que nos fazem cair; e a certeza na Justiça Divina, assim espero, calará o murmúrio de nosso coração, quando não houver mais o que fazer para nos salvar, senão, aguardarmos em silêncio o último suspiro.

4° reflexão quaresmal


Essa coisa que chamamos ideologia, tão impropriamente talvez pelo fato de que feito um oroboros conceitual, o próprio conceito de ideologia tenha se intoxicado com seu veneno, parece-me contundentemente muito mais com uma parasitose do que com uma ideia. Motivo pelo qual creio ser muito mais apropriado lidarmos com ela como lidaríamos com um parasita.

A parasitose ideológica que trataremos aqui se refere ao feminismo, que desaforadamente não poupa nem o sagrado. Refiro-me ao fato de que as pobres feministas, desidratadas de qualquer luz intelectual e principalmente anêmicas das vitaminas do transcendente, observam a religião que até hoje, mais alto alçou o gênero feminino e a tacham como uma ferramenta de opressão contra as mulheres. Mas como seria diferente, essas mesmas, se diante de um abismo tivessem de escolher, jogar-se nas profundezas para encontrar a morte ou atravessar tal abismo por meio de uma ponte construída por homens, escolheriam ser arremessadas para o abismo, desde que fossem empurradas pela sua estupidez vestida de sororidade. 

Esses animais impróprios de serem chamados de mulher, querem o poder social e sacerdotal dos homens, mas fragilizadas pelo parasita que as sustentam, são incapazes de perceber o poder que sempre tiveram perante nós. Comecemos pela Queda. Dirão as feministas: o gênesis é um claro exemplo de misoginia, pois faz de todo mal no mundo, o efeito da ação de uma mulher. Veja bem, não é mentira, mas isso, mesmo que da pior forma possível, não deveria ser a afirmação do grande poder feminino? De maneira muito imprópria poderíamos afirmar que sim, sobretudo se adentrarmos na desordenada ótica das feministas que tão comumente fazem da desordem uma virtude. A questão é que diante da maneira com que enxergam as coisas, Eva deveria ser um tipo de heroína, que não bastasse ter, apenas, assim como quem não quer nada, aberto as portas para o mal no mundo, ainda convenceu ora quem? O homem, a seguir seu exemplo. 

Pensemos na narrativa desses acontecimentos bíblicos, e não nos esqueçamos de seu desfecho: pela mulher o mal entrou no mundo e pela mulher a salvação entrou no mundo; dessa maneira em relação ao gênero humano a Mulher torna-se o personagem principal na teogonia do real. Pois, tirando a Deus, não há ninguém mais importante nos acontecimentos bíblicos do que a Mulher: a Santíssima Virgem Maria. 

Meus caros, minhas carochas, até hoje, tirando a Deus, a voz maior na Igreja é dela! Dizem os sábios de polígrafos universitários nas mãos: por que não há mulheres com poder sacerdotal? Ora, em Fátima, fora São José que veio nos oferecer mensagens e milagres? Se as coisas fossem como as obtusas e os feministos creem, teria vindo São José em Fátima e não Nossa Senhora. E nem por isso, nós homens, vamos rogar aos céus por igualdade de gênero e exigir cotas em milagres e aparições. 

5° reflexão quaresmal


Frente ao altar, esforço-me para que no momento da oração, o som de minha voz alcance a materialidade do sacrário de joelhos no chão. Quando observo a beleza das velas, da artesania dos ornamentos de tudo o que compõem o espaço sagrado, esforço-me para que meus olhos feito um véu de seda, cubra cada objeto e caia sobre sua superfície com a mais perfeita delicadeza. E tudo isso, pois, peço a Deus que aos poucos, torne-me amigo do impossível, do imponderável, do inefável e do impensável, de tudo o que mesmo que precariamente, aproxima-se do tamanho de seu Amor.

6° reflexão quaresmal


O sofrimento de Cristo na cruz, toca-nos na maioria das vezes, superficialmente, na pele, nos sentidos. Sofremos com o Mestre na proporção de nosso amor pelo salvador. Entretanto, na maioria das vezes estamos tão afastados das sublimidades da transcendência, tão arraigados na matéria e suas seduções, que escapa-nos aquilo que em tudo nos serve de elo mercurial entre a solidez do chão sob nossos pés e a inteligibilidade da verdade que em última instância, oferece-nos sentido para que mantenhamos os pés no chão. 

Ao contemplarmos a paixão de nosso Senhor, parece-me que dificilmente nos atravessa a fronteira craniana, as razões inerentes e a proporção infinita de seu sofrimento. É como se admirássemos um cristal, e até mesmo compreendêssemos algo de sua beleza, mas sem que possamos perceber a força de seu fulgor. Um cristal belo, mas de brilho inacessível. Com Cristo e seu sofrimento, para a maioria de nós, atolados neste lamaçal hodierno, acontece o mesmo. Isso, até sermos curados pela britadeira intelectual do santo doutor angélico, sempre tão desrespeitoso com as muralhas de nossa ignorância. 

Que nós, filhos do paracetamol, sejamos fracos, desnudos mesmo do mais animalesco ímpeto de sobrevivência, é óbvio; mas penso, diante das torturas tão comuns aos antigo, dos inenarráveis sofrimentos que a raça dessa época pretérita convivia como coisa normal, provavelmente enlouqueceríamos ao observarmos a primeira amputação sem anestésico. Veja só, o homem urbano, já imensamente afastado da natureza, quase não é capaz de ver uma galinha ser morta sem praguejar contra o criador por permitir tamanha crueldade. Imaginem frente aos suplícios de alguém sendo cozinhado vivo numa caldeira. 

Por favor, misterioso leitor, não me entenda mal, não faço defesa de cruéis abominações, nem acho correto que homem seja da época que for, aparente tranquilidade com a tortura aleia; o que evidentemente é um disparate, pois, se assim fosse, a própria tortura que muito mais que uma ferramenta de dor, tem em vista a propagação do medo, deixaria por óbvio, de ter alguma finalidade. É tortura porque provoca medo, abominação, e se em algum momento não provocasse esses sentimentos nos homens, perderia sua razão de ser. O caso é que, nós dias de hoje, ademais ao "indivíduo" ocidental, a tortura seria desnecessária, apenas o torturador já seria o suficiente para aterrorizar muitos brutamontes de academia. 

E digo tudo isso, pois talvez a comoção que nos é comum quando contemplamos Cristo crucificado, não se dê por conta das implicações inteligíveis do fato de que Aquele a sofrer seja o próprio Deus encarnado, mas sim pela nossa sensibilidade desordenada que tem como limite de tudo, as barreiras da carne. Infelizmente, para muitos católicos "bem instruídos", a dimensão da divindade de Jesus, muito embora possa ser balbuciada por alguma lembrança catequética, no fundo de seus corações, esteja obnubilada pelo verdadeiro soterramento de nossas consciências no materialismo liberal. 

Reflexão de sexta-feira Santa

A CRUZ 

A cada vez que em seus passos, Jesus nosso Senhor, tocou com os pés a poeira do chão, o universo dobrou-se sobre si mesmo e dessa contorção cósmica a realidade fez-se em flor. Até o gesto aparentemente mais gratuito de Jesus, teria o poder de varrer do mundo todas teogonias já proferidas, pois, se há alguma semente de verdade nas tradições anteriores ao cristianismo, é evidente que todas elas estão curvadas à Verdade mesma que é Cristo.  E por conta desse fato, nas narrativas que nos chegaram da vida do Salvador, encontramos uma estonteante coerência simbólica, solenemente amarrada por um forte nó entre a verdade e a beleza. Exemplo disso é a cruz:

"Pela cruz Cristo nos remiu do primeiro pecado e suas consequências. Nossos primeiros pais pecaram ao comer o fruto da árvore proibida. De uma árvore viva, livremente escolheram o fruto que por instantes, apetecera os seus sentidos, mas, sentenciou-os com a morte. Do madeiro da cruz, de uma árvore morta, Jesus Cristo foi alçado e expirou. Suspenso naquele madeiro, adornado pelo sangue santo que vertia do seu martírio, fez-se alimento, o fruto que ainda hoje nos oferece a vida". 

São Josemaria Escrivá

Sulco:  Trabalho 508 - O Senhor tem o direito - e cada um de nós a obrigação - de que O glorifiquemos "em todos os instantes". Por...